Sim, só deveria mandar uma nova newsletter no domingo que vem. Mas não me segurei. Aquela apresentação da australiana nos jogos olímpicos, a do breaking, vergou minha boca no sorriso mais puro, mais cândido, mais deliciado dos últimos tempos. Então, em homenagem à alegria raiz, à alegria moleque que ainda está disponível para nós, mando esta edição aberta a todos os leitores.
Tenho um fascínio mórbido pela incompetência extrema, ou desexcelência. Não estou falando de alguém que precisa insistir um pouquinho mais — dar uma lapidada na técnica, refinar uma ou outra etapa do processo, insistir na prática, acumular um pouco mais de experiência e de repertório. Também não estou falando, ou não necessariamente, daquela pessoa que, antes de ser considerada ruim, precisa melhorar pra caramba. A pessoa que atingiu a incompetência extrema, a desexcelência, é aquela pessoa que é tão ruim, mas tão ruim, mas tão ruim, que o resultado dos seus esforços é uma paródia de seja o que for que ela se propôs a fazer. Escrever literatura. Lutar boxe. Sambar. Tocar triângulo. E a pessoa insiste.
Não vou negar que sou, de fato, uma entusiasta do humor involuntário, uma fanfarrona das mais fuleironas. Acredito sinceramente que o papelão imprevisto é o núcleo puro e sincero do humor. E a desexcelência está aí no núcleo do núcleo, um cristalzinho intocado e precioso de chinelagem. Eu racho demais o bico. Não tenho, vou ser sincera, nenhuma defesa diante do pior do pior. Sou uma grande fã do Cake Wrecks e dos testes horríveis de programas tipo American Idol.
Lembram da Florence Foster Jenkins (1868-1944), interpretada pela Meryl Streep naquele filme? O fato de não acertar uma puta de uma nota não impediu a Florence (que, óbvio, era ricaça) de gravar dois discos e de se apresentar em público mutilando uma série de árias, porque ela amava ópera. Continua a ser zoada até hoje, óbvio. Florence — pela alegria genuína que continua a nos dar — me inspira uma espécie de afeto, mas não pena. Também não tem essa de é isso aí, Florence, que bom que você se divertiu etc. A pessoa tem que ser muito arrombada para ir lá detonar com aquilo que ama. E isso de detonar exige, percebam, um grau muito extremo de desexcelência. Você acha que vai homenagear ou se aproximar do Bach se resolver escangalhar um violoncelo na cacetada, como meu vizinho de trás faz quase todo domingo, e chamar isso de música? Não é tanto uma questão de saber a hora de parar quanto de, digamos, evitar tentar com tanto afinco quando já ficou claro que você é um tremendo de um rola-bosta. Tem gente que não para até depenar o cisne do Tchaikovsky, até reduzir a cinzas o pássaro de fogo do Stravinsky, até carnear todo o carnaval dos animais do Saint-Saëns.
Você não tem que fazer tudo, se meter em tudo. Você pode simplesmente apreciar. Não tem nada de errado em ter nascido só para curtir, para fruir de boa as grandes realizações da humanidade. “But you can’t be Shakespeare and you can’t be Joyce/ So what is left instead?”, o Lou Reed pergunta. Bom, a fruição. (Ou a própria carreira diferentona que ele construiu, com meios e arranjos próprios.) E há o mediano, claro, ou mesmo o ótimo, o muito bom, o competente, o podrinho: há espaço para tudo isso entre uma ponta e outra.
De qualquer forma, acho um privilégio estar viva e poder ver uma Simone Biles ou uma Rebeca Andrade saltando, ou ouvir o que um Hendrix fazia com uma guitarra, ou ler o que um Machado de Assis escreveu. A excelência é, em si, uma coisa assombrosa. Vejam que sempre há algo de deprimente nas regravações de “Feeling Good” depois que a Nina Simone elevou essa música a um patamar divino, mesmo quando essas regravações não são necessariamente ruins. Nada contra o Michael Bublé, mas por favor. O caso é que essas regravações só fazem assinalar a distância — o que há de inatingível, de único, de absoluto, de irredutível na interpretação da Nina Simone. A excelência não inspira tanto o respeito quanto a reverência. E no outro extremo da reverência está a heresia. Heresia é ir lá detonar algo que, quando feito com excelência, é sublime, é magnífico. Heresia é a desexcelência.
Tudo isso para dizer que estou totalmente mesmerizada pela Florence Foster Jenkins do breaking, a australiana Raygun — seu nome de B-Girl —, ou Rachel Gunn. Bem, acho que a essa altura vocês talvez saibam que ela não foi medalhista. E não foi uma derrota do tipo que peninha, daqui a quatro anos ela tenta de novo. Não. Foi um massacre, e um massacre duplo: dela e do próprio breaking, que se debatia e espumava copiosamente até ser ressuscitado pelas outras atletas. A mina, que é australiana, chegou a imitar um canguru dando pulinhos. Juro. O troço foi totalmente indescritível. E não foi uma esculhambação deliberada, como a do Marcel Duchamp no Salão dos Independentes. Foi sério. A Raygun achava mesmo que estava no páreo.
A bicha virou piada mundial. Foi uma chuva dos melhores memes dos últimos anos — tive que pegar uma caixa de Kleenex para ter condições de continuar a rir. A série favorita dela, disseram, era Breaking Bad. Rolou até paródia no The Tonight Show do Jimmy Fallon:
“Ah, então tu faria melhor que a Raygun?” Óbvio que não. Não preciso arriscar o mínimo movimento para ter certeza absoluta, uma certeza cristalina, ululante, de que a minha performance no breaking seria dez vezes mais constrangedora que a dela, o que não é pouca coisa. Chamem de sexto sentido. De gut feeling. De noção. Faz mais de trinta anos que estou ciente do meu molejo (nulo), da minha coordenação motora (patética), do meu carisma (desfavorecido). A diferença entre nós duas, então, é que ninguém nunca me viu fazendo uns passinhos claudicantes que aqui no Brasil a gente chamaria de conferindo-o-tamanho-da-fila-da-lotérica, nem imitando um lobo-guará, uma anaconda ou uma ararinha-azul numa roda, nem pedindo para a galera me chamar de B-Girl Cooldefer.
Sei que tem gente aí com o discurso motivacional engatilhado, louca para exaltar os méritos da coragem. “Será mesmo que tem algum valor ficar só julgando do sofá de casa sem ter posto os pés em Paris, ao contrário dela?“ Olha, eu acho que tem, sim. Fui eu que passei uma vergonha mundial fazendo uma parada de cabeça tão zé linguiça que parecia que minha cervical estava desafiando os paramédicos para a próxima batalha? Não. Então a coragem não tem, ou é, um valor absoluto. Como um blazer de paetês, um relaxante muscular ou uma saideira com shots de tequila, a coragem, sobretudo depois dos trinta, é uma coisa a ser analisada no contexto. Não me entendam mal: acho que as pessoas não só podem como devem tentar coisas novas, diferentes, ousadas. Mas, de novo, é importante (no mínimo) não levar a coisa tão a sério quando você claramente é um lixo completo. Ou seja: é importante ter em mente que se é um lixo completo, e então se perguntar por quê. Por que continuar arregaçando aquilo que você ama, por que continuar enchendo o saco de geral, por que continuar passando vergonha. Não estou falando de gente mediana, nem mesmo de gente ruim. Estou falando de gente totalmente sem condições.
Posso ter o melhor instrutor de breaking, e eu sei, simplesmente sei, que não existe isso de alguém me ensinar a não passar vergonha no breaking. Sim, mesmo em 2004. Sim, mesmo se eu quisesse. Zero chance. Zero. Todo mundo tem aquelas coisas nas quais não dá pé, não importa o quanto tente. E, acho, todo mundo meio que sabe, ou deveria saber, sobretudo depois de certa idade, não só quais são essas coisas mas também por que elas são inviáveis. Tem a ver com os limites do nosso corpo, sim, e com certas características pessoais, e mesmo com o nosso meio. Mas a Raygun resolveu ignorar tudo isso. Sabe aquele discurso de coach de ir além dos seus limites? Isso no geral é patacoada. Tipo, bicho, você tem dor no ciático e vai querer fazer crossfit?
Pode ser que essa cegueira comece com o medo de magoar uma criança. Tem gente que incentiva um filho ou uma filha mesmo quando a coisa é precária, né? Mas o medo de me magoar jamais, em mais de três décadas, passou nem que fosse zunindo à distância pela cabeça da minha mãe, o que, acho, explica muita coisa. Um dia pintei um quadro no colégio e, seguindo as instruções da professora, que era uma mulher boa e crédula, dei para a minha mãe emoldurar. Minha mãe viu aquela casa cor-de-rosa toda torta e rachou o bico folgado. Ela chegava a rir fininho, meio sem fôlego, sobretudo quando mostrei o recorte de revista de onde tinha copiado a casa. Eu tinha uns sete anos. Quando viu que eu fiquei triste, ela tentou consolar: “Mas tu não vai ser pintora, né?”, ela disse. (Sem essa conversinha de que, se ela tivesse me incentivado, talvez eu pudesse mesmo ser pintora.)
Uma vez, também quando eu era criança, tive o fugaz sonho de ser tenista. Insisti e insisti até que minha mãe me matriculou em uma escolinha. Algumas semanas depois, o instrutor telefonou para ela e disse algo do tipo olha, eu tô perdendo o meu tempo aqui e a senhora tá perdendo o seu dinheiro. Eu era tão ruim, mas tão ruim — era um caso tão extremo de desexcelência —, que nem o pagamento da minha mãe o instrutor queria. Ele, que amava o tênis, só me queria fora dali. E vocês acham que minha mãe contou uma mentirinha piedosa? Claro que não. E ainda me zoou por anos.
Para ser bem sincera, nunca tinha parado um segundo para pensar no breaking antes de ter o prazer genuíno, o prazer sincero, o prazer moleque, de rachar o bico com a Raygun. Vendo atletas reais do breaking, como a japonesa Ami Yuasa, ou B-Girl Ami, que levou o ouro, você mais ou menos intui o que está em jogo ali — ou seja, uma combinação improvável mas totalmente hipnótica de flexibilidade, ritmo, fluidez de movimentos, estilo, atitude e algo que só posso chamar de graça. Raygun não tem nenhuma dessas coisas. Se não tem como se olhar atentamente no espelho durante uma apresentação de breaking, ela certamente já viu uma gravação de uma performance sua. E o fato de não ter ficado horrorizada é alarmante.
(Quem tiver um mínimo de tino comercial, tipo o pessoal da Brahma, tem que colocar essa mina para sambar em algum camarote da Sapucaí.)
Independente da opinião de vocês quanto a inclui-lo ou não nos jogos olímpicos, o breaking tem movimentos difíceis e elaborados que um zé bagaço suado dançando num casamento com uma gravata amarrada na testa não consegue fazer, e nem poderia. O ponto do breaking é justamente esse. Como qualquer modalidade em que alguém pode se tornar um praticante de alto nível, o breaking não é para qualquer um. O sujeito do casamento só pode parodiar o breaking, nada além disso. E é aí que mora a graça da coisa, para o delírio do pessoal que já está mesmo na mão do palhaço. Só que a Raygun foi lá e fez essa paródia numa competição de altíssimo nível.
Num casamento à brasileira, depois do, sei lá, oitavo copo de Natu Nobilis, no refrão da “Dança do vampiro”, Raygun teria, sim, levantado uns aplausos e gritos.
Levante a mããão
Entre no clima
Batendo palma
Na levada do axéééééé
E a mina lá se amassando no chão. Nessa hora um sujeito teria tirado a camisa e rodado ela no ar. Outro teria gritado “uhuuuuuuuu”. Um terceiro teria se lançado de joelhos no chão da pista. Aquela tia que todo mundo sabe que curte jovenzinhos começaria a rebolar com o copo no alto. Mas qual é o nível aqui? O nível é inexistente. Esse é meu ponto. Breaking, breaking mesmo, é um troço de nível.
O que me chamou atenção é que Raygun disse, em uma entrevista, que foi, e ainda é, incentivada pelo marido a competir no breaking. É uma informação chocante — não vou nem tentar especular como a coisa chegou a esse ponto, porque acho tudo isso um pouco assustador. Mas é fato que outra faceta do discurso de coach, ainda mais perigosa, preconiza que uma pessoa deve se cercar de gente que a incentiva, que a estimula etc. Certo, até certo ponto isso é válido. Mas o que acontece se, mesmo entre aqueles que são muito próximos, não houver espaço para a bicuda fraterna, para o esculacho afetivo, para a sarrafada amorosa? Não chamo ninguém de “amigo” se essa pessoa não tiver carta branca para me esculhambar, e vice-versa. A esculhambação entre amigos é fundamental para que você não termine jogada na pista de uma olimpíada usando uma roupinha de tratadora de zoológico, se mexendo com a graça e o refinamento de quem está convulsionando numa rave. O que moveu Raygun foi menos a tenacidade do que uma ilusão completa. É um pouco triste pensar que ninguém, ninguém mesmo, pôs a mão no ombro da Raygun e disse “Bah, olha, tu te deu conta da merda que tu tá fazendo?”.
Lá por isso, a senhora Florence também era protegida pelo marido da própria desexcelência. Confesso que tenho zero prática com qualquer tipo de relação em que não há lugar para um escangalho honesto e bem-intencionado, ou mesmo (mas dentro de certos limites, óbvio) para o puro e simples espírito de porco. Porque, amigos, além da questão da heresia, é preciso pensar que, depois, quem vai julgar é o público. E o público vem com memes.
Uma vez, faz muitos anos, minha mãe entrou numas de tentar fazer reformas na casa. Por puro espírito de porco, decidi ficar quieta e observar. Previ que em breve teria uma gema com altíssimo quilate de chinelagem. Dito e feito: a bicha foi lá e rebocou um muro. O troço ficou tão vagabundo, mas tão vagabundo, que quando ela me mostrou o resultado final eu caí na grama e não conseguia mais levantar, porque não parava de rir. Foi um grande momento — eu disse que não tenho defesa nenhuma diante do pior do pior. Se eu tivesse avisado, teria sido privada dessa gostosa gargalhada, e, meu deus, eu gargalho até hoje quando lembro. Depois disso ela teve que contratar um pedreiro de verdade para consertar o estrago. Esse pedreiro parou na frente do muro e ficou quieto. Depois soltou: “O pedreiro que a senhora tinha contratado antes não era muito bom, né?”. Nessa hora eu cheguei a entortar toda de tanto rir.
E, vejam, Raygun, que é professora doutora, pesquisa o breaking há muito tempo. Acho que há aí um terreno fértil para se concluir que entender, no sentido teórico, uma cultura da qual você genuinamente não participa é muito diferente de dominar a prática. Mas isso é outro assunto.
Meu ponto, um deles, pelo menos, é que a gente tem que aprender a gostar sem tentar meter a mão na bagaça. Vai lá comprar uma porcelana boa, vai. Para de tentar fazer em casa. Tá ficando horrível.
Aos assinantes, até domingo!
Em eras de coach este hino ao verdadeiro espírito brasileiro é uma pérola. Não há nada melhor do que cornetar a desexcelência alheia, se virar um meme então, o céu é o limite. Puro suquinho da brasilidade.
Essa geração da Raygun perdeu uma experiência essencial da infância, aquele bullying escolar raiz, bem colocado, que define a incompetência extrema de maneira pública.