Salman Rushdie, identidade e interpretação
Por que Rushdie já não pode alegar que sua obra não tem nada a ver com a fatwa, e por que isso não é ruim
12 de agosto de 2022 é uma data macabra para Salman Rushdie. Na manhã desse dia, no anfiteatro da idílica comunidade de Chautauqua, o autor foi “atacado e quase morto por um jovem com uma faca”. Na ocasião, ele havia subido ao palco para debater a criação e a manutenção de espaços seguros para escritores de diversas nacionalidades, espaços de que próprio Rushdie já tivera (e, como se viu, ainda tinha) necessidade. Fazia mais de 33 anos que o aiatolá Ruhollah Khomeini emitira a fatwa, ou sentença de morte, contra Rushdie e todos os envolvidos na publicação de seu romance Os versos satânicos — livro que, verdade seja dita, pouca gente leu. O próprio agressor não o tinha lido naquela altura, do que, escreve Rushdie, podemos “deduzir que, qualquer que fosse a razão do ataque, não era sobre Os versos satânicos”.
(Achei uma afirmação estranha à primeira vista. Que outro motivo haveria? Tivesse ele lido ou não o romance, o que valia e importava para o agressor era a fatwa, a condenação inequívoca de um líder como Khomeini.)
Quando viu o agressor se aproximando, Rushdie conta que ficou paralisado. Natural: como ele mesmo esclarece, “os alvos de violência vivem uma crise de entendimento do real”; para eles, é impossível saber “o que dizer, como se portar, quais escolhas fazer”, uma vez que “a realidade se dissolve e é substituída pelo incompreensível”. Rushdie compara seu modo de descrever aqueles instantes de terror a uma colagem; nela, relatos de testemunhas e notícias da imprensa se misturam a suas próprias lembranças, que são, como ele mesmo admite, confusas e fragmentárias. Em uma situação de tensão ou perigo, nossa percepção do tempo é de fato alterada. As coisas podem se desenrolar com extrema lentidão; a despeito disso, nem sempre determinamos muito bem a ordem dos acontecimentos, que podem nos parecer simultâneos ou desconectados. Mas Rushdie, conforme seu relato, estava lúcido o bastante para se sentir humilhado, e para, em seguida, ficar triste pelo terno Ralph Lauren que teve de ser cortado para que os socorristas pudessem ver a extensão dos ferimentos.
Havia muita gente na plateia do anfiteatro, gente que — ao lado de Henry Reese, que debateria com Rushdie e foi o primeiro a correr em seu socorro — ajudou a conter o agressor e a evitar o pior. Um detalhe aterrador é que, segundo Rushdie, “alguns espectadores [...] pensaram que o ataque podia ser algum tipo de performance artística com a intenção de ilustrar a questão da segurança dos escritores”. O sangue desfez a ilusão. Durante exatos 27 segundos, o agressor esfaqueou Rushdie quinze vezes.
Rushdie se contrapõe ao narrador homônimo do, nas palavras dele, “excelente romance brasileiro” Memórias póstumas de Brás Cubas, que “confidencia que está contando sua história além-túmulo.” Como “o leitor atento terá adivinhado”, brinca Rushdie, ele não teve de usar o mesmo recurso de Machado de Assis, pois sobreviveu à agressão. Faca: Reflexões sobre um atentado, publicado pela Companhia das Letras com tradução de Cássio Arantes Leite e José Rubens Siqueira, é a história de tudo o que essa sobrevivência envolveu, incluindo daquilo que a possibilitou e do que ela significa.
É uma sobrevivência física e emocionalmente desgastante, e por isso mesmo surpreendente. Do momento imediatamente posterior ao ataque, em que estava “caído no chão do anfiteatro em Chautauqua, pensando na morte, tentando não morrer”, Rushdie salta para as muitas semanas de convalescência em que a recuperação era incerta e a dor, excruciante. Seus ferimentos foram numerosos e sérios — e não se limitaram ao olho que agora aparece coberto nas fotos, mas atingiram a boca, o pescoço, a mão e o intestino delgado — , e é inacreditável que ele tenha sobrevivido. Não à toa, dedica o livro aos homens e mulheres que salvaram sua vida.
Tanto quanto os muitos profissionais da saúde, a mulher do autor, a também escritora Rachel Eliza Griffiths, foi fundamental durante essa recuperação. Para Rushdie, a história de sua sobrevivência é, no fundo, “uma história em que o ódio, a faca como uma metáfora do ódio, é afinal superada pelo amor”. Parece piegas, mas há, subentendido, um propósito maior aqui: o de frisar, por meio de uma comparação com o jovem que o atacou, que Rushdie não é uma mera vítima digna de pena.
Rushdie não menciona em momento algum o nome do agressor, o que parece, de início, um tanto incongruente. Chama-o, a esse rapaz de Nova Jersey, apenas de A. O problema é que o A. de Faca está longe de ser um vulto informe e indigno de um nome; as motivações de A. em Faca não parecem a Rushdie uma mera consequência da abertura de uma mente influenciável ao discurso inflamado de figuras como Khomeini. Pelo contrário, Rushdie parece tomar o ataque, de resto motivado pelo radicalismo, como algo pessoal demais — mas também é certo que, quando alguém lhe dá quinze facadas, dificilmente você vai conseguir dar de ombros e alegar que aquilo não foi nada pessoal. E há, como o próprio Rushdie frisa, a intimidade entre vítima e agressor quando a arma em questão é uma faca — que, diferente de um revólver, que pode ser disparado à distância, exige a proximidade física.
Ainda que Faca seja uma narrativa autobiográfica que explora um evento traumático e suas consequências, Rushdie não abre mão dos procedimentos literários mais explícitos. Assim, na segunda parte do livro, o autor constrói um diálogo imaginário com A. — recurso arriscado, mas que termina por se mostrar bem-sucedido. É aqui que a suposta incongruência da recusa de Rushdie em utilizar o nome real do agressor fica evidente, uma vez que o autor procura entender quem o jovem é e quais foram suas motivações — o que impede que A. desapareça em uma massa amorfa de outros sujeitos radicalizados que não devem jamais ser postos sob os holofotes, sob o risco de inspirar outros tantos. Contudo, sob o ruído criado pelo fanatismo, Rushdie acredita que algo, um impulso individual, “possibilitou [a A.] pegar a faca”. Ele não permite, portanto, que os leitores classifiquem a ação de A. sob a rubrica comum do radicalismo. Também não permite que o vejam, a ele, Rushdie, como a vítima digna de pena. É aí que a faca como metáfora do ódio que é superado pelo amor fica clara, quando, em um ponto alto do diálogo, Rushdie, dirigindo-se a A., imagina a estreiteza do mundo do agressor: “Havia eu e havia todas as suas outras realidades também, sua solidão, seus fracassos, suas decepções, sua necessidade de culpar alguém, seus quatro anos de doutrinação, sua ideia do Inimigo”. O mundo de Rushdie, repleto do amor da mulher, dos filhos e dos amigos, surge então contraposto ao mundo supostamente estéril de A. Talvez o mote de Faca seja justamente esse: o do “amor [como] uma força real, uma força curativa”.
No fim das contas parece que, ao se recusar a mencionar o nome do agressor, Rushdie espera que o A. de Faca fique restrito ao plano ficcional, controlado, como um fantoche pelo titereiro, por sua própria imaginação e pelos seus recursos estéticos de escritor. É ele, Rushdie, quem fornece a A. suas motivações e justificativas, rejeitando ao mesmo tempo a aleatoriedade e a gratuidade de um ato que o feriu profundamente e o tipo de atenção e de fama geradas pela menção ao nome verdadeiro do cidadão. O A. de Faca é, assim, ligeiramente diferente do agressor real, de modo que faz sentido omitir o nome deste último. Ao elaborar o diálogo fictício, Rushdie entendeu, é claro, o jogo que estava jogando.
Quero hoje falar de algo que me deixou pensativa depois da leitura de Faca — daquilo que Rushdie chamou de leitura “puramente literária” de seus livros.