"Tua mãe não te educa?"
Como Philip Roth, que tanta gente considera misógino, me ajudou a atravessar uma adolescência sufocante
You can't depend on the goodly hearted
the goodly hearted made lamp-shades and soap
You can't depend on the Sacrament
no Father, no Holy Ghost
You can't depend on any churches
unless there's real estate you want to buy
You can't depend on a lot of things
you need a busload of faith to get by
— Lou Reed
1.
Alexander Portnoy currando um bife de fígado, primeiro atrás de uma placa de rua e em seguida no banheiro de casa, foi a luz que avistei no fim de um túnel sombrio e interminável chamado adolescência. “Human”, gravada pelos Pretenders, era a música que eu ouvia com insistência, sobretudo o refrão em que a Chrissie Hynde canta Well, there's blood in these veins/ And I cry when in pain/ I'm only human on the inside. Lia e relia o trecho em que Álvaro de Campos, o heterônimo do Fernando Pessoa, dizia estar farto de semideuses. Sim, havia gente no mundo, e gente tão exasperada que currava o bife de fígado do jantar. Equívoco categorial de principiante — o primeiro de muitos, sinto dizer —, pois a existência do complexado Portnoy se limitava às páginas de um livro. Tudo bem. Quando você tem catorze anos e ainda não chegou à faculdade de filosofia, essas distinções não importam tanto assim.
2.
Eu achava que pouca gente de fato parecia gente. O cheiro de santimônia nos corredores, no ginásio e nas salas de aula daquele colégio católico era penetrante — era como se santimônia fosse um produto de limpeza acre e barato vendido em galão. Todo mundo sentia aquela merda, mas arder, arder mesmo, só ardia nas meninas. Uma boa menina sabia usar a santimônia para manter tudo limpinho — aquele negócio que deixava nossos olhos lacrimejando, que depois ficava impregnado na nossa pele e no nosso uniforme, no nosso cabelo e no nosso material escolar. No fim das contas, a gente fedia também.
3.
Uma boa menina podia aprender tudo o que havia de bom, belo e correto lendo a revista em quadrinhos do Marcelino Champagnat. Uma boa menina era responsável e diligente, uma boa menina seguia todas regras e respeitava todas as normas, uma boa menina tirava sempre a nota máxima e obedecia aos professores, uma boa menina não retrucava e não enchia o saco de ninguém com perguntas desnecessárias, uma boa menina não bebia nem um mísero chopinho, uma boa menina não usava certas palavras e expressões, uma boa menina era meiga e gentil e cordata, uma boa menina se deixava domesticar, uma boa menina não tinha outro desejo além de ser perfeita, e ser perfeita era não ter desejo próprio. Eu era uma péssima menina, e aí, acho, a santimônia queimava com mais força, feito água benta na galera possuída pelos demônios de costume.
4.
Nem pensar, naquela época turbulenta e infernal dos, sei lá, doze aos dezessete anos, em assumir certas vontades e contradições, nem pensar em dar voz a meia dúzia de dúvidas sinceras e urgentes, nem pensar em dar uma surtadinha — mesmo que de leve, e, rapaziada, como eu precisava —, nem pensar em raciocinar e falar e agir e escolher com a mesma liberdade dos meninos. Eles tinham a possibilidade de, se quisessem, ser uma coisa espantosa, uma coisa que passei a adolescência inteira tentando ser: gente. Sobravam o Lou Reed, a Patti Smith, o Neil Young. Sobrava a ficção. Sobrava sobretudo o Philip Roth. E os personagens do Roth sempre me pareceram gente no sentido mais básico, até mesmo mais tosco, da palavra: destrambelhados, agastados, furiosos, confusos, culpados de toda sorte de deslizes, dos ridículos aos mais sérios. Eles tinham outros tipos de amarras, eu achava. Eram amarras tão legítimas e tão tristes quanto as minhas. Não raro os personagens do Roth viravam o que viravam por ter passado boa parte da vida reprimindo alguma coisa. E se tem algo que você aprendia ao ser uma menina de catorze anos que estudava num colégio católico no interior Rio Grande do Sul era a reprimir alguma coisa. Você reprimia a própria honestidade só para descobrir que reprimir a própria honestidade era uma coisa muito trabalhosa, muito vexaminosa, e que não ia dar para sustentar essa patifaria para sempre — ou por mais uma hora. Aí você hiperventilava, o cheiro de santimônia grudando nas cavidades nasais. Mas bom. Roth. Ali estava uma literatura onde havia gente em busca do acerto, mas que era simpática ao erro, tolerante com a fraqueza, aberta, na medida do possível, à pura e simples estupidez humana, à cretinice ululante. Um luxo a que as meninas não podiam se dar.
5.
Mas vejam: eu estava, até certa altura, sozinha. Minhas colegas eram, sim, boas meninas — mais do que isso, queriam muito ser boas meninas e receber elogios, e não as culpo por isso. Eu era ambivalente. Também queria os elogios, e também queria muito, mas sempre achei que fingir dá uma trabalheira do cacete, e nunca tive saco para simular uma virtude cujo sentido, para início de conversa, eu sequer entendia direito. E o problema era justamente esse. O que era virtude no colégio e na maior parte das famílias não era virtude lá em casa. E foi aí que começou o horror danado que foi minha adolescência. Minha mãe é, vejam, uma lexicógrafa de palavrões; também cataloga e reproduz gestos obscenos com o fervor de uma antropóloga e a desenvoltura de uma mímica de rua. Do clássico e polivalente dedo do meio ao elaborado gestual de “E no cuzinho, não vai nada?”, ela é um poço de erudição e técnica, modulando o ímpeto dos movimentos das mãos e braços segundo a ocasião exige. Absorvi tudinho, e teria usado sem o menor pudor se o pudor não fosse uma coisa tão necessária naquele tempo e lugar. (Deus do céu, a noção de pudor na minha adolescência daria um tratado.) Minha mãe, porém, nunca conseguiu me incutir a necessidade de ao menos simular uma religiosidade num colégio católico, nem que fosse para sobreviver sem ter de encarar o equivalente psicológico do cilício.
6.
Quer dizer, sempre soube que deus existia, mas para mim ele era o Lou Reed. Ninguém podia blasfemar contra o Lou Reed lá em casa. Na celebração da nossa primeira comunhão, ocasião muito esperada pela maioria dos meus colegas, minha mãe ficou tão chapada que tentou comprar um filhote de papagaio de um integrante da Geral do Grêmio (não perguntem). Não sei como chamar a maternidade da minha mãe. Freestyle, quem sabe? Salve-se quem puder? É na sola da bota, é na palma da mão? As outras mães não eram assim. As outras mães esperavam que as filhas fossem boas meninas. Comportadas. Encharcadas de santimônia. As mães das minhas amigas avisavam, antes de nos deixarem em uma festa, que era proibido beber, e usavam o mesmo tom de voz que usariam para falar com uma criança de três anos. Eu ficava horrorizada, mas fingia que não. Não, senhora, minha mãe também não me deixa beber. Foi, me lembro bem, num show do Carlos Santana em Porto Alegre que minha mãe me ensinou a encher a cara com intenção e método, me estendendo uma notinha e me fazendo correr da arquibancada até o bar. Eu tinha dezessete anos e corria rápido; passei a correr menos rápido à medida em que ia virando os copos de plástico com deus sabe o quê, uísque, acho, ou rum, e por fim acabei imóvel, atirada na grama do lado de fora do Gigantinho, sendo acordada pelo cheiro de cachorro-quente e pela gargalhada da minha mãe. Tudo sempre teve um bocado a ver com música. Aprendi a dançar dançando Dire Straits num volume que fazia trepidar o chão da sala de estar. “Two Young Lovers.” “Solid Rock.” Quando dirigia, minha mãe estourava o som do carro a ponto de ser parada pela polícia — primeiro não ouviu um apito e depois achou que o guarda estava acenando para ela, e aí acenou de volta. Era Lynyrd Skynyrd (o solo de guitarra de “Free Bird” fazendo os vidros pulsarem). Kiss. Velvet Underground, óbvio. Bowie. Rolling Stones. Tudo menos Beatles. Não tenho dúvida nenhuma de que minha mãe ia parar o carro e me fazer descer se eu colocasse Beatles, “música de pau no cu, bota Beatles numa festa e vai todo mundo embora, só sobra criança, cachorro e corno”, então nunca coloquei.